JOSÉ ALBERTO LOURENÇO | ECONOMISTA
SITUAÇÃO FINANCEIRA CONFORTÁVEL AGUÇA “APETITE” DOS PRIVADOS
Os governos do PS e do PSD têm procurado criar condições para que o direito a um sistema público, solidário e universal de protecção social dos cidadãos possa ser subalternizado e transformado num negócio chorudo, entregue aos grandes fundos de pensões privados.
O modelo de repartição adoptado para o nosso sistema público de Segurança Social desde a Revolução de Abril, financiado por contribuições sociais dos trabalhadores e das entidades patronais, assenta no compromisso intergeracional de quem efectua descontos no presente tem garantida uma protecção ao longo da sua vida activa e na sua velhice.
Desde o início deste século, tornou-se um lugar-comum a ideia de que é necessário reduzir os níveis de vida dos reformados para evitar que a Segurança Social se torne “insustentável”.
Com esse argumento, iniciou-se uma trajectória de reformas das pensões que modificou substancialmente as regras de cálculo e de actualização das pensões e a idade de acesso à reforma sem penalizações. A provisão pública de rendimento na reforma foi recuando de forma gradual, mas expressiva. Os níveis de pensões degradaram-se progressivamente em relação aos rendimentos correntes, e o acesso à reforma sem penalização passou a ocorrer em idades cada vez mais avançadas.
A pensão média de velhice situava-se, em 2007, acima do nível do Salário Mínimo Nacional (líquido da contribuição do trabalhador), mas, em 2023, representava apenas 89% desse valor, e situava-se abaixo do limiar de pobreza.
O termo “sustentabilidade” passou a ser usado pelos vários governos do PS e do PSD para redefinir o objectivo das reformas que promovem o retrocesso do direito a uma pensão de reforma justa. E as medidas conduzidas em nome da sustentabilidade têm imposto, invariavelmente, sacrifícios aos pensionistas, mas a narrativa de legitimação incute a ideia de que o caminho seguido evita o desmantelamento da Segurança Social, permitindo preservá-lo para as gerações futuras.
Como esta narrativa se tornou dominante, a ideia de que a sustentabilidade do sistema exige reformas que reduzem direitos deixou de ser questionada.
SITUAÇÃO FINANCEIRA CONFORTÁVEL
Na realidade, o discurso da sustentabilidade visa desmantelar o sistema de pensões da Segurança Social, pois tem sido, sistematicamente, utilizado para legitimar as medidas que promovem a insegurança económica dos reformados.
Este discurso falacioso cria uma percepção errada da situação financeira do sistema previdencial; tende a ocultar as consequências sociais adversas das reformas introduzidas em nome da sustentabilidade; e não leva em conta as políticas que, nalguns anos, provocaram a redução das receitas da Segurança Social.
Numa situação financeira confortável – como a que se encontra a Segurança Social –, com um discurso falacioso da sua insustentabilidade financeira, conjugado com as várias medidas tomadas nas últimas décadas – que têm impedido a revalorização das pensões de reforma e a perda contínua de poder de compra de muito pensionistas e reformados –, os governos do PS e do PSD procuram criar condições para que “o direito a um sistema de Segurança Social que protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência, ou de capacidade para o trabalho” – consagrado no art.º 63.º, n.º 3, da Constituição – possa ser subalternizado e transformado num negócio chorudo e entregue aos grandes fundos de pensões privados.
O êxito do sistema público solidário e universal da Segurança Social tem de sustentar-se na conexão entre a valorização do emprego com qualidade, na melhoria progressiva dos salários, na aposta em políticas combinadas com objectivos económicos e sociais articulados, que privilegiem o objectivo do pleno-emprego e a valorização salarial (revendo a legislação laboral que a prejudica), criando condições financeiras que permitam, no futuro, taxas mais elevadas de substituição do salário pelas pensões e uma vida digna no envelhecimento. Exactamente o contrário daquilo a que temos assistido nas últimas duas décadas.
“ALMOFADA” PARA MAIS DE DOIS ANOS DE PENSÕES
O “Relatório sobre a Sustentabilidade Financeira da Segurança Social”, anexo à proposta de OE 2025 (apresentado em Outubro) e o documento da execução orçamental de Dezembro (do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) desmentem, categoricamente, as mentiras do governo do PSD sobre a situação financeira da Segurança Social.
Em 2024, o excedente do sistema previdencial atingiu os 5,5 mil milhões de euros (M€), e o valor das contribuições e quotizações atingiu os 27,7 mil M€. Os activos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social atingem os 41,2 mil M€ (14,1% do PIB) e 207,4% dos gastos anuais com as pensões do sistema previdencial (velhice, sobrevivência e invalidez). Ou seja, este fundo de reserva constitui uma “almofada” da Segurança Social que lhe permite pagar mais de dois anos de despesa com pensões.
Entre 2011 e 2024, o sistema previdencial (repartição) foi quase sempre excedentário, com excepção de 2012. Com a chegada da “troika”, a economia entrou em recessão, o desemprego real ultrapassou os 20% e todas as medidas então tomadas visavam o controlo da dívida e do défice público. O abrandamento do ritmo de crescimento económico e o desemprego constituem a maior ameaça ao equilíbrio financeiro da Segurança Social.