Com um Estado Social temos mais igualdade – através da universalidade dos serviços –, justiça social e solidariedade. Sem ele, regredimos e tiramos futuro à geração vindoura.
Pensar nas funções do Estado, em concreto aquele que emergiu do 25 de Abril, é o mesmo que perguntar à República Portuguesa para que serve ela.
Numa primeira fase, a razão da sua existência limitava-se à defesa, à justiça e à diplomacia, em suma, às funções de soberania do Estado. O Povo, que pouco ou nada contava na equação, veio depois a impor, através de movimentos revolucionários e reivindicativos, o reconhecimento de direitos de liberdade, depois ampliados a direitos fundamentais com a posterior consagração nas leis. Assim aconteceu com a nossa Constituição de 76, a comemorar os 49 anos, que consagrou um amplo catálogo de Direitos, de Liberdades e de Garantias, nestes se incluindo os dos trabalhadores.
Em 1976, os deputados constituintes perguntaram-se a si próprios e interrogaram o novo Estado em formação com o 25 de Abril, para que é que ele devia servir, quais eram as tarefas fundamentais que o Estado da 3.ª República 1 deveria assegurar e garantir ao Povo, titular do poder político (art.º 108.º)2, rompendo com o marasmo, obscurantismo, atraso social e cultural, a ditadura e o desprezo pela dignidade humana que nos afundou durante 48 anos.
Sim, porque quando, há 50 anos, nos libertámos das algemas e conquistámos a liberdade de pensamento e de expressão, já noutros cantos da Europa se tinham implantado, nas leis, direitos qualificados como económicos, sociais e culturais.
Esta nova geração de direitos fundamentais – alimentada na Europa pela derrota do nazi-fascismo, pelo surgimento de um campo de países anticapitalistas e pela disputa entre os mundos capitalista e socialista – levou a um notável alargamento e consolidação constitucional dos novos direitos económicos, sociais, culturais e, mais tarde, também ambientais (art.º 58.º até art.º 79.º), que os constituintes de 1976, finalmente, transpuseram para a nossa realidade.
É por isso que, de entre os direitos fundamentais, os direitos sociais são uma conquista de Abril, um bem precioso e ainda recente.
Foi pela via da conquista de direitos sociais, e da sua implantação na Constituição, que se estabeleceram como tarefas fundamentais do Estado (art.º 9.º), entre outras, “promover o bem-estar”, a “qualidade de vida do povo” e a “igualdade real entre os portugueses”.
Claro que o Estado tem ainda outras funções, de soberania, e tarefas relativas à independência nacional, ao Estado de Direito, à democracia e à garantia dos direitos e liberdades fundamentais. Mas estas tarefas/funções do Estado estão no mesmo nível de relevância, completam-se e complementam-se. Realizam a democracia económica, social e cultural (art.º 2.º), mas também asseguram a dignidade da pessoa humana, com vista a uma sociedade livre, justa e solidária (art.º 1.º).
IMPEDIR O RETROCESSO DAS CONQUISTAS
A conquista do que chamamos Estado Social fez-se com luta e sacrifício, e teve origem na formação de uma comunidade política e territorial chamada Estado, inicialmente Estado Guerra/Defesa, depois Estado Direitos, Estado de Direito Democrático e Estado Social. Foi o Estado Social que gerou e fixou direitos sociais, concebidos como direitos a prestações com fonte em obrigações do Estado, materializadas em serviços.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS), diferente dos seus detractores e inimigos que o abastardam, trocando a palavra “serviço” por “sistema” – permitindo sacar do SNS o lucro privado em saúde –, responde à obrigação constitucional da função estadual social e vincula qualquer governo a promover e defender o SNS, cumprindo a Constituição e os fundamentos de Abril.
O mesmo com o sistema de ensino, a rede pré-escolar, a gratuitidade dos manuais escolares, a salvaguarda dos direitos de parentalidade, de assistência social nas suas várias dimensões, a erradicação da pobreza, e, porque não, a garantia de salários dignos e justos, tudo tarefas e obrigações que cumprem o “bem-estar”, a “qualidade de vida” e a “igualdade real entre os portugueses”.
Enfrentamos agora um grande risco, quando líderes europeus pretendem desencadear uma corrida armamentista de 800 mil milhões de euros, com o sacrifício da saúde, do ensino, da assistência e do bem-estar dos povos, por supressão ou diminuição das prestações sociais dos Estados.
Colocados perante a escolha artificiosa entre guerra e degradação social, gastando naquela os recursos que impedem esta, então cabe aos povos que conquistaram o Estado Social a pulso e, entre estes, aos trabalhadores, impedir o retrocesso do conquistado em 100 anos de lutas.
1 O partido Chega é visceralmente contra a 3.ª República, vigente, logo contra a Constituição de 1976, defendendo uma 4.ª República.
2 Os artigos citados são da Constituição da República.